Linhas gerais de um
estudo sobre as origens das pequenas autarquias*
Desde a primeira metade do século XIX, se vem sublinhando, cada vez mais, a importância das autarquias, na vida e na governação dos povos. Esse reconhecimento tem acompanhado o aprofundamento da vivência democrática que caracteriza as sociedades modernas, mas tem as suas raízes profundas em instituições que floresceram ao longo dos séculos. Com ele está relacionado o desenvolvimento dos estudos históricos que têm por objecto as origens das instituições autárquicas e a pluralidade dos contributos que nelas convergiram, dos quais resultou a fisionomia de que se revestiram nos tempos mais recentes.
1. Introdução
Ao analisar a história das autarquias, os estudiosos têm-se
concentrado na história dos municípios, entendendo estes num sentido
praticamente unívoco, em resultado da configuração com que ficaram após a reforma
administrativa levada a cabo no século XIX, e deixando de lado, como
manifestações episódicas, alguns dos mais antigos municípios que, por razões
diversas – especialmente políticas e económicas – não sobreviveram como tais à
reforma administrativa.
Por outro lado, encarando a história das autarquias como a
história dos municípios, esqueceu-se a história das freguesias e das aldeias,
como um capítulo secundário, porventura despiciendo, da nossa história como
povo, cimentada na existência de muitas e plurifacetadas comunidades.
Para tal situação contribuíram as circunstâncias em que surgiram
as freguesias com o estatuto de que desfrutam na actualidade, o que levou a
supô-las como uma inovação, introduzida para substituir uma realidade anterior,
as paróquias religiosas, quando se achou necessário implementar a separação de
poderes, entre o Estado e a Igreja, entre a prática religiosa e a vida civil[1].
Na verdade, a freguesia já existia, ainda que, por então, nela se
fundissem os dois aspectos, o civil e o religioso, e desta fusão resultasse
que, no correr dos tempos, devido à importância de que desfrutava na sociedade
civil, o poder religioso se impusesse como poder dominante, dentro da freguesia
ou paróquia.
Não restam dúvidas de que, desde longe, a freguesia teve uma
indiscutível função civil, como resulta daqueles momentos em que os seus
habitantes se viram na necessidade de se unir para defender os seus próprios
direitos ou para realizar obras importantes de interesse colectivo.
Outra das razões que fizeram com que se relegassem as freguesias
para o segundo plano foi a convicção de que elas eram entidades menores, com
uma importância muito reduzida na organização do território. Este preconceito,
não apenas subalternizador mas ainda minimizador do papel das freguesias,
acentuou-se pelo facto de a reforma que levou à separação entre a paróquia
religiosa e a sociedade civil se ter operado numa época em que os espíritos
estavam sob a influência da concepção centralista da ideologia napoleónica.
Mais do que como realidades próprias, com a sua individualidade e
a sua história, as freguesias foram e continuam a ser vistas como simples
parcelas em que foram divididos os municípios, por razões de prática
administrativa, como se não tivesse acontecido exactamente o contrário, isto é,
como se geralmente os municípios não tivessem resultado da reunião de um
conjunto de freguesias, na sua maioria preexistentes.
O preconceito de que, como realidade civil, não existia a
freguesia, mas apenas a paróquia religiosa, contribuiu para que os
historiadores do municipalismo e das instituições democráticas se não
interessassem pela história das freguesias. Parecia mesmo que até um certo
momento só existia a paróquia ou que a freguesia não tinha outras funções além
das religiosas. Só a partir de uma dada altura, como realidade nova, teria
nascido a freguesia civil!
Por esse motivo é que a história das nossas comunidades, na
perspectiva civil, se tem cingido à história dos municípios. Nessa linha, entre
nós, se enquadram os estudos de Alexandre Herculano, Teófilo Braga, Henrique da
Gama Barros, Torquato Soares, e recentemente de outros[2].
Essa orientação teve, porém, como contrapartida o estudo da
história das paróquias, como entidades de cariz religioso, no âmbito da
história da Igreja. Paralelamente ao que sucedeu com a história dos municípios
– em que especialmente se fez sentir a influência de Augustin Thierry – foi
Imbart de la Tour, autor do livro Les
Paroisses Rurales du IV.e au XI.e siècle, o primeiro historiador que chamou
a atenção para a importância do estudo das paróquias[3].
Desde então, com especial relevo para as últimas décadas, têm-se
multiplicado os trabalhos dedicados à história das paróquias nos vários países,
focando aspectos tão diversificados como o povoamento e a organização
territorial, a difusão do cristianismo e a organização eclesiástica. Em
Portugal, para além das investigações dedicadas a temas parcelares, a história
das freguesias do ponto de vista religioso serviu de tema à valiosa monografia As Paróquias Rurais Portuguesas, escrita
por Mons. Miguel de Oliveira[4].
Alberto Sampaio, autor de As
Vilas do Norte de Portugal, foi o primeiro historiador português que
orientou a sua investigação no sentido de definir o papel que entidades tão
secundárias como as villas romanas
desempenharam, como antepassados de muitas das freguesias que actualmente
matizam o nosso território[5]. Embora ainda longe de
alcançarem o incremento de que beneficiam actualmente, o limitado avanço dos
estudos históricos e arqueológicos da sua época, não lhe permitiu avaliar o
papel de outras formas de organização comunitária, pelo menos desde o período
romano, na formação das paróquias e freguesias.
2. Comunidades primitivas e
ocupação romana
Ainda antes da ocupação romana, já as comunidades locais se
tinham instalado em territórios, mais ou menos definidos, e exerciam neles a
sua actividade. No entanto, apesar do esforço dispendido pelos arqueólogos,
ainda não temos um conhecimento satisfatório dessas comunidades, pela carência
de elementos documentais. As escassas informações de que dispomos a esse nível
devem-se a autores do período romano, mencionando-se como os mais antigos
Estrabão, Pompónio Mela e Plínio. Com base nas informações hauridas nestes
escritores, os arqueólogos do século XX procuraram interpretar um dos signos
que aparece em algumas inscrições do noroeste peninsular, uma espécie de C
voltado para a esquerda [ɔ],
que tanto poderá corresponder a centúria,
segundo alguns, como a castellum,
segundo outros, mas de qualquer modo designará uma comunidade étnica ou o
espaço fortificado onde a mesma se refugiava.
À medida que se estende e aperfeiçoa a estrutura administrativa implementada
pelos romanos, torna-se possível um conhecimento mais aprofundado das
sociedades espalhadas pelo território. Esse conhecimento continua naturalmente a
ser condicionado pela existência de fontes escritas, de índole narrativa,
jurídica ou epigráfica, e pelos dados que essas fontes disponibilizam. A
natureza e organização dessas comunidades espelham o que se passava nos
arredores de Roma, no Lácio, e depois em toda a Itália, que a seguir se
reproduziu nas Gálias e na Península Ibérica.
A organização administrativa romana, que inicialmente visava
objectivos de estratégia militar e de manutenção da ordem pública, e logo a
seguir o domínio do território destinado a controlar os recursos materiais e a
tornar efectivas as exacções fiscais, importantes para o funcionamento da
máquina do império, baseava-se efectivamente na divisão em províncias (na
Hispânia, a partir de 127 a.C., a Ulterior e a Citerior e, com Augusto, depois
de 27 a.C., a Lusitânia, a Bética e a Tarraconense), governadas por um pretor, propretor ou cônsul, e,
depois, na divisão destas em conventi,
cuja existência se relacionava com a administração da justiça, mas, na prática,
a governação do território era feita a partir das cidades, algumas
preexistentes e outras fundadas sob o domínio romano[6].
As cidades do
Império Romano, em resultado da sua origem e do modo de integração no domínio
de Roma, gozavam perante a administração de tratamentos diferenciados, que se
reflectiam no estatuto fiscal e na autonomia interna de que gozavam – peregrine, foederate, stipendiarie, libere
et imunes…
Para além de
fundarem colónias – cidades fundadas ex novo, com cidadãos enviados por Roma,
geralmente veteranos do exército e suas famílias – as autoridades romanas
elevaram à categoria de municípios vários
núcleos urbanos anteriores à sua chegada. Esta promoção dava-lhes o privilégio
de serem tratados como parceiros pelas autoridades romanas e de se governarem
com autonomia. Aos respectivos habitantes eram concedidos todos os privilégios
de que usufruíam os habitantes de Roma.
O conjunto dos
habitantes, designado como populus ou
plebs, ou com outros nomes, elegia,
segundo normas precisas, os magistrados que se ocupavam do governo da cidade –
os questores (que tratavam dos
recursos financeiros), os edis (que
tinham a responsabilidades das estruturas materiais) e os duúnviros (a que competia a administração da justiça).
A existência de
um considerável número de municípios na área geográfica correspondente ao
hodierno Portugal está em relação com o elevado nível de municipalização
alcançado por este território durante a ocupação romana.
3. As comunidades do mundo
rural
Para lá das muralhas das cidades, estendiam-se grandes espaços,
com uma população mais ou menos densa, que deles extraía os recursos necessários
à respectiva sobrevivência, cujos excedentes eram canalizados para o
abastecimento dos centros urbanos. Esta população distribuía-se pelos diversos pagi e vici disseminados pelo território.
Um pagus era uma área
rural, de povoação relativamente dispersa, cujos habitantes geralmente se
designavam como pagani. Observe-se
que o significado adquirido por este termo (pagão,
e, dele derivado, paganismo) foi
responsável por algumas confusões de linguagem, actualmente superadas. O pagus abrangia um território
relativamente vasto, dentro do qual se localizavam as explorações agrícolas –
os fundi. Os pagi oram tratados como unidades censitárias e fiscais pela
administração romana, mas a sua existência era possivelmente anterior e os seus
habitantes ou os que os representavam agiam com autonomia, e eram tratados como
parceiros, pelo menos em relação a certas matérias, como a chamada lustratio finium ou reconhecimento dos limites
(que se consideravam sagrados) do pagus,
a gestão dos edifícios, das obras públicas ou de fruição pública, como as viae vicinales, e dos dinheiros
resultantes das doações particulares. A lustratio
pagi e outras funções de índole predominantemente religiosa, como o culto
das divindades locais e o culto do imperador, eram exercidas pelos magistri pagi, mas pelo menos numa parte
desses pagi havia um conselho de
decuriões, que tomava as decisões de interesse colectivo ex scitu pagi.
O vicus (de que, aliás,
também derivam as palavras vizinho, vizinhança, e até o topónimo Vigo) correspondia a um núcleo
habitacional de pequena dimensão. Os vici
devem a origem a factores de ordem económica – agrícola, artesanal e comercial
– ou religiosa. No vicus de índole
agrícola, os moradores ou vicini
ocupavam-se fundamentalmente do cultivo da terra, frequentemente através da sua
exploração comunitária; um conselho de moradores deliberava sobre matérias
idênticas às que na cidade eram da competência da Ordo decurionum, como, por exemplo, da cedência de terreno para a
erecção de um monumento honorífico. Havia excepções, como aquela em que um vicus estava na dependência de um
patrono, tendo sido ou não por este fundado. Os vici ligados às actividades artesanais ou comerciais correspondiam
a importantes áreas de produção de artefactos, e situavam-se nos lugares de
paragem (stationes) ou nos
cruzamentos das vias de comunicação e portos, assim como em locais onde se
realizavam feiras e mercados. Alguns nasceram por mercê de factores religiosos,
na proximidade de santuários, especialmente daqueles que atraíam as pessoas por
razões de saúde, designadamente quando estavam associados às águas termais.
Testemunhos epigráficos mostram-nos que pelo menos alguns vici eram governados por magistri eleitos anualmente e tinham
conselhos formados por indivíduos que prestavam assistência aos magistrados iurisdiscendi quinquenales, que se
ocupavam dos problemas da justiça, deliberando vici sententia, e eram responsáveis pelas operações de censo, que
se repetiam de cinco em cinco anos, seguindo o exemplo do que se passava nas
colónias e municípios. Torna-se clara a função administrativa que, tal como o pagus, também o vicus desempenhava. O vicus
estava, no entanto, longe de se apresentar como uma realidade homogénea, em
todos os casos, e variava entre o pequeno centro habitacional em
desenvolvimento mas já próximo dos modelos urbanos, e o pequeno aldeamento rural,
onde se registavam situações económicas e sociais diversificadas, em certos
casos de grande pobreza.
Em simultâneo com os pagi e vici, devemos
considerar outras realidades, como os domínios particulares, entre os quais se
destacam as villae. Embora em muitos
casos relacionadas com a administração fiscal, estas villae ou “vilas” eram explorações agrárias privadas, de razoável
dimensão, que, além das terras de cultivo e dos montados, incluíam as
habitações do senhorio ou do feitor e as dos trabalhadores, os celeiros, os
lagares, as oficinas, quando fosse o caso, e os estábulos. Com o andar do
tempo, ao longo da Idade Média, os trabalhadores destas villas alcançariam diversificados níveis de autonomia, em razão dos
quais as mesmas se apresentam, na perspectiva das freguesias posteriores, em
plano idêntico ao dos pagi e vici. Todos estes vocábulos continuarão
a aparecer, nos tempos medievais, para designar as realidades sobre que em grande
parte assentam as paróquias e as freguesias dos séculos posteriores.
4. Após o advento do
cristianismo
Quando falamos em paróquias,
estamos a mencionar uma realidade que supõe a grande mudança que entretanto
se deu no Orbe romano e resultou da difusão do cristianismo, que beneficiou da liberdade de culto, introduzida pelo edito de Milão, do imperador Constantino, em 313, e transformada em religião oficial do Estado pelo imperador Teodósio, com o edito de Tessalónica, em 380. A
Igreja como instituição assentará os pilares nas estruturas do Império,
servindo-se até do seu vocabulário, como sucedeu, por exemplo, com a palavra diocese, introduzida pela reforma de
Diocleciano, para designar a capital de uma grande área administrativa, que
englobava um conjunto de províncias, embora só muito mais tarde, e com outros
cambiantes, venha a ter uma utilização eclesiástica[7].
A Igreja estabelecerá também as bases da sua organização a partir
das grandes cidades, onde residia o Bispo, e os cristãos que nela viviam, e
depois os do mundo rural que a circundava, se reuniam, recebiam o baptismo,
participavam na celebração da Eucaristia e eram sepultados.
À medida que o cristianismo se difundia até ao mais longínquo aro
rural, tornava-se cada vez mais necessário criar meios de assistência à
população, através da erecção de lugares destinados a acolher as assembleias
dos crentes, as igrejas, aonde o Bispo ou os clérigos por ele delegados se
deslocavam, para ministrar a catequese e presidir às celebrações dominicais,
uma vez que inicialmente o baptistério e o cemitério continuavam a localizar-se
na sede episcopal. Estas novas igrejas eram construídas nos pagi e vici, por onde estavam disseminados os cristãos que se iam
convertendo, e por vezes ocupavam os lugares anteriormente dedicados aos ídolos
venerados pelos seus habitantes. Encontramos menção de um movimento de erecção
de igrejas relativamente intenso na História
dos Francos, de Gregórios de Tours (539-594). Este movimento era comum a
outras áreas da cristandade, incluindo o noroeste peninsular.
Em pleno reino suevo, foram elaborados, na
sua forma inicial, dois importantes documentos, posteriormente conhecidos como Divisio Theodomiri e Divisio Wambae. A Divisio Theodomiri (Teodomiro foi o rei que conduziu os suevos ao
cristianismo), documento que pretensamente teria sido elaborado num Concílio
realizado em Lugo, em 569, fornece-nos a lista das paróquias então existentes
no espaço correspondente ao reino suevo, independentemente da designação com
que genericamente são referidas (abstemo-nos por agora de estudar os matizes
dos vocábulos diocese e paróquia em relação a esta e às épocas
seguintes). As “ecclesiae” aí mencionadas correspondem a antigos vici (nome, todavia, não usado no
documento), mas em simultâneo faz-se o elenco de uma série de pagi (estes assim referidos), a que se
estendem igualmente os cuidados pastorais de cada um dos Bispos.
Os suevos acabaram por ser integrados no reino visigodo. Ora os
visigodos, por razões históricas suficientemente conhecidas, foram de todos os
bárbaros os mais próximos herdeiros da tradição romana. S. Isidoro de Sevilha
(560-605), que personaliza e compendia todo o saber do seu tempo, na conhecida
obra Etimologias, classifica as
povoações existentes na época, distribuindo-as pelas categorias já conhecidas:
as cidades (dentro das quais, com
evidente arcaísmo, distingue os municípios e as colónias), os vici, os pagi e os castella,
entendidos no sentido que temos vindo a referir.
5. Comunidades locais sob a
administração muçulmana
Poder-se-ia recear que durante a ocupação muçulmana, pelo menos
na metade sul da Península Ibérica, a situação se tivesse alterado. Mas na
verdade, embora com o uso de nomes diferentes, tomados da língua árabe ou dos
seus dialectos, encontramos nas terras meridionais um panorama semelhante ao do
norte.
Assim, deparamos com áreas mais vastas, à espécie de distritos,
divididas em cora’s, que, por sua vez
se subdividem em demarcações menores, chamadas iqlim, dentro das quais se localizavam as várias alquerias ou aldeias. Note-se que o
vocábulo al-deia, que então designa um
pequeno conjunto de casas, normalmente o edifício destinado à habitação e os
seus anexos, só mais tarde – e curiosamente fora do território sob o domínio
muçulmano – virá a adquirir o significado com que hoje o utilizamos: encontra-se
pela primeira vez em 1253, numa carta régia endereçada aos “hominis de aldeis
et de terminis de Bragancia de extra villam de Bragancia”[8].
Se é geralmente admitido que entre os muçulmanos não existiu
qualquer instituição que se pudesse comparar aos municípios da Europa ocidental
e, em concreto, da Península Ibérica, o mesmo não poderá dizer-se com rigor a
propósito das mais pequenas comunidades, especialmente das que se localizavam
no mundo rural. Um certo abandono dessas comunidades a si mesmas, por parte do
poder central, desde que satisfizessem os encargos tributários, levou-as a
organizarem-se localmente, em moldes que se poderão considerar
autogestionários. Documentos do século XII e XIII, testemunham a sobrevivência
de algumas dessas comunidades rurais ou djama’s
(aljamas na versão fonética dos
reinos cristãos), que eram dirigidas por conselhos de anciãos ou shuyûkh. Encontramos influências dessa
instituição nos conselhos de notáveis designados como “dos seis” nos forais
extensos da área de Ribacôa.
6. Últimos séculos do
primeiro milénio
No mundo cristão ocidental, o número de paróquias cresceu
exponencialmente durante os séculos IX e X. Tal expansão foi acompanhada pelo
fenómeno que se designa como a territorialização das paróquias. Operou-se mais
rapidamente nas áreas onde houve maior continuidade dos grupos humanos que
habitavam no território, e onde, por conseguinte, se tinham preservado melhor
as estruturas antigas. Naturalmente, além da preocupação em clarificar a
pertença das populações de uma determinada área a uma igreja específica, para
efeitos de baptismo, de sepultura e de outras implicações religiosas, havia,
como nos antigos vici e pagi, uma nítida motivação que podemos
dizer de índole fiscal, isto é, a preocupação de delimitar as áreas geográficas
para efeitos de pagamento da dízima e de outros contributos. Essa territorialização
virá a ser reconhecida oficial e definitivamente pelo Direito Canónico, como
consta da Summa Aurea de
Henrique de Susa, escrita por volta de 1250[9].
Um dos melhores testemunhos do caminho já percorrido no âmbito da
organização paroquial, no século XI, é o Censual
do Bispo D. Pedro, que permite elaborar um mapa completo das paróquias da
Arquidiocese de Braga no tempo deste dinâmico prelado (1070-1091),
fornecendo-nos um panorama muito próximo do actual[10].
Facto é que, para além da realidade religiosa, essas comunidades
realizavam assembleias destinadas a tratar dos problemas materiais da vida
quotidiana, como as águas, as pastagens, as fontes e os caminhos, e a eleger os
mordomos ou os seus sucedâneos, que se encarregavam da colecta dos impostos a
pagar ao monarca ou a quem fazia as suas vezes.
7. Após a fundação de
Portugal
Os séculos XII e XIII, em Portugal, correspondem ao período
áureo de expansão das instituições municipais. As comunidades locais foram
chamadas a participar na defesa e na consolidação do país e no seu
desenvolvimento, e deram-lhe um amplo contributo.
Os forais eram os
principais documentos através dos quais se reconhecia a existência de uma
comunidade, se delimitava o seu território, e se lhe concedia um determinado
grau de autonomia, definindo as regras a seguir, em geral, ou individualmente,
nas relações dos vizinhos, quer entre si, quer com os moradores dos territórios
circundantes, e com o monarca.
Nos mais antigos desses documentos, não se observa uma distinção
clara entre as simples comunidades de freguesia ou de aldeia e os municípios,
porque tal distinção só gradualmente se foi introduzindo. Com efeito, nos
tempos iniciais, as povoações a que é outorgada uma “carta de foro”, quer
tivessem já um certo cariz urbano, como os burgos
e póvoas, quer se ficassem pela
matriz rural, eram caracterizadas pelo diminuto alfoz territorial.
Só quando, em face das condições geográficas
e sociais, uma parte dessas comunidades foi chamada a assumir a
responsabilidade de um território mais vasto, arcando com os encargos da
administração, da justiça e da defesa, se introduziu a diferenciação, que levou
à criação de amplas circunscrições, cuja sede passava a ser a vila. As pequenas autarquias que não
beneficiaram deste processo nem foram integradas num município maior
mantiveram-se, embora como simples freguesias ou aldeias, com órgãos de governo
próprios, porventura mais reduzidos,
distinguindo-se então os concelhos de
município e os concelhos de aldeia.
As Inquirições levadas a
cabo nos reinados de D. Afonso II e D. Afonso III permitem a elaboração de um
mapa, que não difere muito do actual, da freguesias do norte do país.
Aparecem-nos estas como unidades espaciais, para efeitos de ordem fiscal, e em
muitas pagam-se impostos ou tributos de índole colectiva, sendo os moradores
responsáveis pela sua recolha, o que os fazia aproximarem-se uns dos outros e
aprofundar a consciência da sua existência como comunidade.
Mantinha-se este panorama no começo do século XVI, conforme o
testemunho de muitos dos forais
manuelinos. A freguesia-paróquia continuará a desempenhar, durante vários
séculos, as suas funções simultaneamente nas esferas religiosa e civil, e a
servir de intermediária entre os poderes mais altos – a coroa e o município – e
as populações.
8. Em conclusão: as
freguesias no mundo contemporâneo
A primeira reforma administrativa posta em execução após a
implantação do liberalismo (Decreto de 18 de Julho de 1835), com o objectivo de
adaptar o sistema administrativo às exigências dos tempos modernos, criou as
Juntas de Paróquia, que se ocupavam dos assuntos da administração civil, embora
a autoridade religiosa – o pároco, que presidia à Junta – continuasse a ter um
papel predominante.
Após a implantação da República, ocorrida em 5 de Outubro de 1910,
consumou-se a separação entre a paróquia religiosa e a freguesia civil, no meio
de um processo nem sempre linear, através do qual se chegou a uma situação que,
no fundo, se mantém, na actualidade.
É, porém, de observar que as reformas introduzidas após a
revolução liberal enfermavam do pressuposto vicioso do centralismo, de tradição
napoleónica, que fazia com que os municípios, à partida credores de uma
autonomia que era necessário fomentar, proteger e regulamentar, se tornassem
órgãos de execução das políticas do governo central, e, em paralelo, as
freguesias se transformassem em instâncias destinadas a concretizar as decisões
dos órgãos deliberativos dos municípios.
Deverá
acautelar-se a autonomia de uns e de outros, uma autonomia cujas regras têm de
ser claras e bem definidas. O mais importante princípio a ter em conta é o
princípio da subsidiariedade, mas nem esse está claramente definido ou
reconhecido pela legislação, nem é correctamente entendido[11].
No meio de todas as dificuldades que as afectam no presente, é de
sublinhar a importância das freguesias, como espaço de construção, definição e
preservação de identidades, condição basilar de um desenvolvimento harmonioso.
Podemos aplicar às freguesias o que em relação ao município
escreveu Alexandre Herculano, num artigo publicado em O Português, de 17 de Maio
de 1853: ”A administração da localidade
pela localidade deve chegar até ao último limite em que não repugna ao direito
das outras localidades constituídas uniformemente. A administração central
abrange tudo o que fica além desses limites no regime prático da sociedade”.
A sobrevivência e o desenvolvimento das comunidades locais
constitui os pilares da verdadeira democracia, e a freguesia é o primeiro órgão
de que dispõe o cidadão para participar na vida pública e zelar desse modo
pelos interesses da comunidade a que pertence.
António Matos Reis
[1] A palavra paróquia é de origem grega (παροίκία),
encontrando-se já na versão bíblica dos Setenta, com o significado de
“comunidade que vive em terra estrangeira” ou “em peregrinação”, e usa-se em
grego moderno com o mesmo sentido que lhe é dado nos países latinos. A palavra freguesia foi introduzida, no latim
medieval, para designar a comunidade dos “filii ecclesiae” (filhos da igreja), expressão de que
resultaram os vocábulos freguês e freguesia. Tanto paróquia como freguesia
são, por conseguinte, vocábulos de origem eclesiástica, e, na actual linguagem
da Igreja, usam-se quase indistintamente para designar a mesma realidade.
Quando se passa à administração civil, o único vocábulo usado para designar as
pequenas autarquias é o de freguesia.
[2] Citem-se
especialmente José Mattoso, Humberto Baquero Moreno e Mara Helena da Cruz
Coelho.
[3] Imbart de la Tour, Les Paroisses Rurales du IV.e au XI.e siècle, Paris, Alfonse Picard, 1900.
[4] Miguel de Oliveira, As
Paróquias Rurais Portuguesas, Lisboa,
União Gráfica, 1950.
[5] Alberto Sampaio, Estudos
Históricos e Económicos, vol. I, Lisboa, Liv. Cherdron, 1923, p. 3-254; 2.ª
edição, autónoma: As Vilas do Norte de
Portugal, Porto, Editorial Vega, 1979.
[6] Para esclarecer um problema de vocabulário, que pode ser
suscitado entre o público leigo a estas matérias, observe-se que, entre os
romanos, o vocábulo civitas – no
plural, civitates – de que deriva a
nossa palavra cidade, não se emprega
para designar esta mas sim uma comunidade étnica distribuída por um território
mais ou menos vasto. A cidade, como hoje a entendemos, é designada pelo
vocábulo “urbs”, de onde vem o adjectivo urbano,
urbanismo, etc. Quando, neste estudo,
nos referirmos à cidade, entenderemos o vocábulo no sentido moderno,
equivalente ao romano “urbs”; usaremos o vocábulo “civitas”, na sua forma
latina, quando nos referirmos à realidade étnica assim designada pelos romanos.
[7] Inicialmente, ou seja, na sequência da reforma de Diocleciano
(284-305), tratava-se de uma grande circunscrição civil, sob a autoridade de um
vigário, abrangendo várias províncias, elas mesmas incluindo várias cidades. A
criação por Constantino (306-337) de novas funções administrativas (prefeitos
pretorianos e condes) e a adopção do termo para designar a comunidade ou área
que depende do bispo, instalado na capital de uma cidade (civitas),
conduziu ao gradual abandono do seu sentido civil. Durante a Idade Média, a
palavra diocese continuou a ser de uso raro e a referir apenas, na
maioria das vezes, um grupo de igrejas baptismais unidas pela proximidade
territorial. Quando se falava da área ou da comunidade a que se estendia a
jurisdição do bispo, os textos preferiam outros termos: civitas,
territorium, episcopatus, e
sobretudo parochia, um termo usado ainda pelos bispos ou pelos papas
reformadores do fim do século XI e início do século XII, e inclusivamente
nalgumas passagens do Decreto de
Graciano. O vocábulo diocese só a
partir do séc. XII-XIII passou a designar exclusivamente a circunscrição sobre
a qual se exercia a autoridade de um bispo. Ao mesmo tempo, acabou-se com a
ambiguidade do termo parochia > paróquia, que passou a utilizar-se na sua acepção actual, designando um
território organizado localmente em torno da igreja e do cemitério.
[8] T.T., Ch.
D. Af. III, liv. I, fl. 3.
[9] Henrici Hostiensis, Summa aurea,
lib. III (De parochiis), rubr. XXIX, n.º 1-2, Lyon 1537, fl. 392 v.º. Cf.
Elisabete Zadora-Rio, «Territoires
paroissiales et construction de l’espace vernaculaire», em Médiévales,
n.º 49 (automne, 2005), p. 105-120.
[10] Foi importante a participação dos particulares na construção de
“basílicas”, destinadas ao culto das relíquias dos santos, e na erecção de
“igrejas próprias”, destinadas ao serviço religioso das populações dependentes
que viviam nos seus domínios. À sua volta organizaram-se espaços, estando
alguns deles na origem de futuras paróquias, quando esses templos passarem a
estar na dependência dos prelados diocesanos (um estudo mais amplo desses
aspectos ultrapassa o âmbito deste estudo).
[11]
O princípio da
subsidiariedade deve entender-se correctamente: Quando uma determinada
entidade, neste caso uma pequena comunidade, não tem meios para conseguir os
seus fins deve recorrer-se à autoridade que lhe está imediatamente acima, isto
é, por exemplo, quando uma freguesia não tem capacidade para resolver os seus
problemas ou quando os problemas ultrapassam a dimensão de freguesia, e se não
lhe for possível resolvê-los em associação com outra ou outras freguesias
confinantes, a que os mesmos problemas digam respeito, é de admitir o recurso a
uma entidade superior, neste caso a entidade concelhia. A organização em
concelhos e freguesias é, na prática, a maneira mais eficiente de resolver os
problemas de uma área geográfica de dimensão limitada. Mas quando um município
ou uma freguesia não tem possibilidades de resolver os seus problemas, por lhe
faltarem meios, então deve recorrer ao apoio de uma autoridade imediatamente
superior, por esta ordem: o município, uma instância de poder regional, o
governo central. Os órgãos de poder de cada um destes níveis, por um lado,
devem respeitar-se, e, por outro lado, devem colaborar uns com os outros.